Museu estará aberto de quinta a domingo, das 14h às 18h, com uma exposição especial sobre o caso, para receber a população durante a 35ª Festa Nacional do Pinhão
Em meio às paisagens serranas de Lages, uma história ocorrida em maio de 1902 ainda ecoa pelas ruas da cidade, não apenas pela brutalidade do crime, mas pela maneira como ele foi reinterpretado ao longo do tempo pela população. O assassinato do caixeiro viajante Ernesto Canozzi e de seu empregado Olintho Pinto Centeno, foi um marco na história local, dividindo opiniões, mobilizando a elite e produzindo memórias que resistem até hoje.
Parte dessas lembranças, inclusive, pode ser visitada no Museu Histórico Thiago de Castro, que estará aberto em horário especial, das 14h às 18h, de quinta-feira (19 de junho) até domingo (22 de junho), onde documentos originais e móveis pertencentes aos envolvidos no caso estão preservados e à disposição do público.
O crime
A história começa com a chegada de Ernesto Canozzi, um respeitado caixeiro viajante italiano, à cidade de Lages. Funcionário da companhia Santos & Almeida, de Porto Alegre, ele era figura conhecida e bem-vista pela sociedade lageana. Sempre que passava pela cidade, hospedava-se e jantava com os irmãos Thomaz e Domingos Brocato, imigrantes italianos que fugiram da Sicília após cometerem diversos crimes, embora essa informação só tenha vindo à tona posteriormente.
Thomaz, que tinha estudado até o terceiro ano de medicina, exercia a função de médico, era considerado um “doutor milagroso” e gozava de grande prestígio entre a elite local. Os irmãos Brocato frequentavam espaços influentes como o Clube 1º de Julho e a maçonaria, convivendo com políticos e famílias tradicionais de Lages. Era nesse contexto de civilidade aparente que, no dia 1º de maio de 1902, Ernesto Canozzi e seu empregado foram assassinados às margens do rio Caveiras, enquanto retornavam ao Rio Grande do Sul.
Por curiosidade, Dr. Thomaz Brocato foi nomeado perito, pelo comissário de polícia, para comparecer ao local do crime e realizar o exame de corpo de delito, quando recebeu a informação de que dois corpos foram achados no “passo debaixo do rio Caveiras”, conforme determinou no processo, Ignacio Casemiro de Góss.
A investigação e o julgamento
Poucos dias após o crime, Domingos Brocato foi preso como principal suspeito. Em seguida, seu irmão Thomaz também foi detido, acusado de ser o mentor intelectual do assassinato, mesmo sem provas de sua participação. O caso provocou alvoroço em Lages e dividiu opiniões: muitos não acreditavam que os “finíssimos” irmãos Brocato pudessem cometer tal ato. O motivo oficial apresentado foi passional, segundo versões da época, apresentados de forma incontroversa, somente no final do processo, Canozzi teria uma carta de recomendação para pedir em casamento uma jovem da influente família Ramos, por quem Domingos também era apaixonado.
As famílias envolvidas, no entanto, negaram essa versão. Após a morte de Canozzi, jornais de Porto Alegre noticiaram que ele era noivo de uma jovem, residente em Caxias, o que coloca uma interrogação neste ponto levantado nos autos, uma vez que Canozzi só esteve em Lages por duas oportunidades, pouco tempo para um jovem noivo se relacionar com alguém, principalmente de uma família tão tradicional, levando em consideração os costumes da época.
Apesar das ligações com figuras importantes da cidade e da maçonaria, o processo foi rápido e considerado por alguns historiadores como “sumário”, com sinais de perseguição política e ausência de provas conclusivas. Thomaz morreu meses depois, em agosto de 1902, ao tentar fugir da prisão. Foi alvejado enquanto corria, buscando chegar nas proximidades do rio Carahá. A fuga da cadeia (localizada onde hoje se encontra a praça João Costa) até sua morte durou cerca de cinco minutos. Foi enterrado ao lado de Canozzi, mas seu túmulo desapareceu com o tempo. Já Domingos cumpriu pena em São José, onde foi assassinado em 1921, por outro detento, João Ruivo, desafeto no tempo do cárcere.
A reinterpretação do crime e o culto aos “irmãos” Canozzi
Com o passar dos anos, a memória do crime se transformou. Canozzi e Olintho passaram a ser venerados como santos populares, conhecidos ao longo do tempo como os “Irmãos Canozzi”, mesmo sem qualquer laço de sangue entre eles. A história saiu dos tribunais e instalou-se no imaginário popular, adquirindo contornos religiosos e milagrosos, típicos da religiosidade popular do sul do Brasil. Estes fatos são levantados no livro “Caso Canozzi: Um crime e vários sentidos”, da historiadora Sara Nunes e nas testemunhas que deram suas versões no processo criminal.
O museu que guarda a memória
Hoje, parte dessa complexa história pode ser visitada no Museu Histórico Thiago de Castro, em Lages. O acervo conta com fotos, documentos originais do processo criminal, além de móveis que pertenceram aos irmãos Brocato, como uma mesa com quatro cadeiras, um armário e a porta da antiga cadeia que ficaram presos. Acredita-se que nas cadeiras tenham se sentado os quatro personagens centrais da tragédia: Ernesto Canozzi, Olintho Centeno, Thomaz e Domingos Brocato, já que há registros de que Canozzi jantava com os irmãos em suas passagens por Lages.
O museu permanece aberto à visitação e oferece ao público uma oportunidade rara: conhecer de perto objetos e registros que compõem um dos casos mais emblemáticos da história lageana. Mais do que peças antigas, o que está ali é a memória viva de uma sociedade em transição, em busca de modernidade, mas marcada por intrigas, desigualdades e disputas de poder.
Visitar o Museu Histórico Thiago de Castro é, portanto, mais do que um passeio: é um mergulho em uma Lages do passado, com suas luzes e sombras, suas elegâncias e tragédias, e, acima de tudo, suas histórias.
Texto e Fotos: Rafael Araldi
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